Esquerda acorda para a disputa ideológica

Em entrevista ao jornal Flitoral, Luiz Dulci, ex-ministro do Governo Lula admite que a esquerda falhou ao não fazer a disputa de ideias e valores que sustentavam o projeto de mudanças sociais, mas ressalta que essa perspectiva está sendo resgatada agora. “Começamos a disputar ideias e valores, não se trata de doutrinar, fazer a cabeça das pessoas no mal sentido, mas, explicar os fundamentos”, informa Dulci, que, aqui, analisa a atual conjuntura política do Brasil e da América do Sul e aponta a necessidade de uma aliança política na luta contra o neofacismo para as eleições de 2022.

Ressurgência das memórias

Luiz Dulci participou dos principais movimentos políticos do Brasil que, desde a década de 1970, sustentaram a luta contra a ditadura militar e pavimentaram a chegada dos trabalhadores à Presidência da República com a eleição de Lula em 2002. Militante estudantil, Dulci foi, como residente, uma das lideranças que levou a CEU (Casa do Estudante Universitário), no Rio de Janeiro, a atuar de forma marcante em eventos históricos de resistência política pela reconquista da democracia no País.
A história da Casa é contada no Livro “A Universalidade da CEU”, que resgata a memória daquele importante espaço de construção e formação política de várias gerações de estudantes, não apenas brasileiros, mas de diferentes nacionalidades, que por lá passaram. Com a palavra, Luiz Dulci:

Formação política

O PT deveria ser um instrumento, e foi, de formação política. Não somente no sentido clássico, por meio de cursos e palestras. O PT teve, e continua tendo deputados, prefeitos, muita gente que chegou a essas funções, despertou para a política pela militância, nem tanto pela formação articulada de conhecimento.
Atividades formais de educação política são importantes, mas o tipo de formação política que se fazia na Casa do Estudante Universitário (CEU), no Rio, por exemplo, que não era de transmissão de doutrinas, era de vivências e experiências, é fundamental.
Paulo Freire dizia que a melhor maneira de fazer formação política é a militância no partido. Para ele, o PT deve ser um espaço no qual as pessoas, sobretudo das classes populares, que nunca tiveram atuação política direta, possam apreender a fazer política fazendo. E o PT foi bastante isso. Agora está tendo um esforço de retomada de cursos, palestras, debates, grupos de pesquisas.

O legado petista

Os governos liderados pelo PT tiveram grandes realizações, expansão de direitos, tais como o direito à casa própria e a democratização do acesso à universidade. Na política externa, resgatamos o Mercosul. Na área social, 40 milhões de pessoas foram resgatadas da pobreza, da miséria. O salário-mínimo cresceu 60% durante os governos do Lula e o mercado interno se expandiu.
Vejam os preços dos combustíveis. Aumentar o preço do combustível três vezes em 15 dias como está acontecendo (entrevista concedida em 24/01/2021) porque o dólar está oscilando em função de políticas monetárias de grandes potências não tem sentido.
Nós tínhamos uma política diferente, muito mais justa, de não atrelar o preço do combustível à variação do dólar. O Brasil produz 95% do combustível que consome, portanto, não há necessidade de dolarizar o preço.
Não fizemos tudo que queríamos, mas, o que foi realizado, do ponto de vista de justiça social, nenhum outro governo fez no Brasil, nem mesmo o governo democrático do Getúlio que teve conquistas muito importantes para o Estado brasileiro, para os trabalhadores.

Não disputar valores e ideias, falha histórica da esquerda

Não disputar valores e ideias, falha histórica da esquerda
Avançamos muito em termos de conquistas materiais, expansão e democratização de direitos, conferindo dignidade à vida prática das pessoas, mas, nós não tivemos a mesma criatividade, o mesmo empenho, talvez a mesma sabedoria pra fazer a disputa de ideias e valores que sustentavam esse projeto de mudanças sociais.
Paralelamente às transformações econômicas, sociais, políticas, culturais, internacionais, nós deveríamos ter feito essa disputa. Nós deveríamos ter explicado porque estávamos fazendo aquela política habitacional. Não só porque é justo, não só porque melhora as condições de vida das pessoas. Essas coisas a gente não explicava, ficava parecendo que era só por generosidade. Tinha generosidade, que é uma coisa importantíssima na luta de esquerda, na luta socialista, mas tinha uma filosofia, uma visão.
Os nossos governos adotaram políticas antineoliberais, contracíclicas, mas nós fizemos pouca crítica ao consumismo, ao individualismo, aos valores do neoliberalismo. Essa é uma falha histórica nas esquerdas como um todo, faltou fazer a disputa de ideias e valores, o combate, como agora estamos sendo obrigados a fazer. Às vezes na defensiva.

Direita disputa ideias e valores reacionários

Direita disputa ideias e valores reacionários
Hoje, a direita faz, no Brasil, uma disputa de ideias e valores regressivos, reacionários. Não só não querem que o país avance, se torne mais justo, mais livre, mais igual, como querem que retroceda. A visão de família que a ultradireita defende no Brasil é a visão reacionária, assim como a visão étnica que, inclusive, tem elementos do discurso da cultura da escravidão.
O governo Temer, aquele desastre que nós sabemos, não fazia esse tipo de disputa, mas o governo Bolsonaro faz. Eles têm opinião sobre família, raça, gênero, homossexualidade, sobre o Estado. São opiniões espantosas, desastrosas, catastróficas, mas eles defendem, eles fazem essa disputa.
Por exemplo, essa coisa de ‘escola sem partido’ é justamente o contrário. O que eles querem fazer é partidarizar numa única linha, de maneira exclusivista, a escola. A reação do movimento social, das esquerdas, até agora tem sido capaz de impedir isso.

Doutrinação, não, clareza ideológica, sim

Não digo que a resistência esteja sendo ótima, é óbvio que nós estamos na defensiva, mas começamos a disputar ideias e valores. Até mesmo Lula, que era um pouco refratário a ficar explicitando ideologicamente as coisas, hoje, considera imprescindível que se faça isso. Não se trata de doutrinar, fazer a cabeça das pessoas no mal sentido, mas, explicar os fundamentos. Porque nós temos uma visão de Estado radicalmente diferente do Paulo Guedes? A população precisa entender isso para fazer sua opção.
Nossos governos nunca partidarizaram a vida escolar. Paulo Freire, que foi nossa referência, dizia que as pessoas têm que receber, da escola, a possibilidade de pensar com a própria cabeça. Escola não é lugar para manipular a consciência das pessoas. Então, nos acusar de ter partidarizado a vida escolar, impossível.

Contraofensiva neoliberal derrotou a esquerda na América do Sul

O golpe contra a esquerda (derrubada do governo Dilma) não aconteceu só no Brasil. Teve golpe no Paraguai, em Honduras, na Bolívia e, onde não teve golpe, também houve derrota. O que houve, na verdade, foi uma contra ofensiva brutal do neoliberalismo na América do Sul e na América Latina. De maneira muito mais articulada de âmbito internacional do que as pessoas imaginam e com participação direta, e muitas vezes clandestina, dos Estados Unidos.
Tivemos a impressão de que os Estados Unidos não estavam interessados no nosso continente porque tinham outras prioridades, como o Iraque, por exemplo, mas, nos enganamos. O dedo do imperialismo vai ficando cada vez mais evidente. As informações da vaza-jato mostram isso. Antes do golpe contra o governo Dilma, Temer encontrou-se quatro vezes com a embaixadora dos Estados Unidos no Brasil (Liliana Ayalde).

Autocrítica

Agora, precisamos avaliar nossos próprios erros. Um deles, a limitada disputa de ideias e valores, a disputa ideológica. Outro, uma certa acomodação dos movimentos sociais no Brasil, uma vez que éramos um governo progressista, desenvolvendo políticas públicas que beneficiavam a maioria da população.
Assim, quando veio o golpe, embora houvesse, no país inteiro, um trabalho dedicado que não deve ser subestimado, a capacidade de mobilização foi limitada para resistir, ao contrário do que ocorreu em outros países. A Argentina, por exemplo, chegou a reunir 500 mil pessoas em manifestações nas ruas.
Nós fizemos mobilizações belíssimas, mas não tínhamos força social e política acumulada. O fato é que deveríamos ter nos dedicado mais ao fortalecimento da consciência e da organização política da sociedade.

Reconquista

Nós perdemos a maioria na sociedade e, para voltar ao governo, temos que reconquistar essa maioria nas classes populares. Isso é possível porque Bolsonaro recebeu votos de uma parcela da sociedade que não é fascista e também não é de regressão de costumes. O antipetismo levou ao voto em Bolsonaro de pessoas que não se identificam com as ideias e valores que ele representa, o que não significa que as pessoas insatisfeitas com ele voltarão para o campo da esquerda. Isso é uma conquista.

Governo Bolsonaro, neoliberalismo de corte fascista

É uma espécie de neoliberalismo autoritário, de corte fascista. O neoliberalismo voltou agora não só no Brasil, também na Bolívia, no Equador, mas, sem capacidade de conquistar apoio da maioria da opinião pública, precisa do autoritarismo para se implantar. Agora, é bom ter claro que, no Brasil, toda a grande mídia – Folha, Estadão, Globo – apoia o programa de governo do Bolsonaro. Eles não se opõem a nada que o governo faz no terreno da economia nem a desconstrução na área social.
Jorge Paulo Lemann (empresário), por exemplo, já disse, sobre esse governo, que, tirando umas bobagens infelizes que era melhor não falar, tá tudo certo. Essa é a opinião da burguesia financeira, se não de toda ela, da imensa maioria, e da burguesia industrial sobre o governo Bolsonaro.
Eles não querem vender a Eletrobras, que é uma holding, querem vender Chesf, Eletrosul, Eletronorte, Furnas, que são estruturas importantíssimas não só para gerar energia, mas para a soberania nacional. Se o Brasil se envolver, eventualmente, num conflito e toda a geração de energia elétrica estiver nas mãos de estrangeiros, o que isso poderá significar para a soberania nacional?


Aliança política contra o neofascismo

Um dos polos da disputa em 2022 terá as esquerdas, outro, a direita. Se a esquerda e a centro-esquerda – entendendo-se PDT e PSB como centro-esquerda – estiverem unidas no primeiro turno é melhor, é desejável que estejam, mas, não estou dizendo que será polo só se estiver unida. Lula chegou à Presidência da República mais de uma vez disputando com candidatos da esquerda.
Penso, entretanto, que devemos nos empenhar fortemente para construir uma aliança eleitoral nos estados e em nível nacional para 2022. Antes de ser uma aliança eleitoral tem que ser uma aliança política contra o programa neoliberal e neofascista do governo Bolsonaro.

Contexto Político

O centro político no Brasil não existe mais. Existia com Ulysses Guimarães, Teotônio Vilela. Se, quando estávamos no governo, essa gente que era, de fato, de centro, ainda estivesse no PMDB, nós não teríamos sido tragados por todas aquelas relações no Parlamento que eram imprescindíveis para governar, mas tinham um preço altíssimo.
O Brasil hoje não tem centro político. Luciano huck é centro? Não. Toda essa gente é neoliberal e o centro no mundo nunca foi neoliberal. Os liberais históricos não queriam o avanço da estatização, mas não queriam eliminar o Estado, eles reconheciam que o Estado tem determinado papel. Keynes (John Maynard Keynes, economista inglês) se dizia liberal, mas achava que o Estado tinha um papel fundamental. A turma de hoje, não. Paulo Guedes (ministro da Economia) quer vender tudo. Tudo que o Brasil levou 40, 50 anos pra construir.

Centro esquerda

Se Lula for candidato, a chance de ganhar é muito grande. Se não for Lula, ainda assim as esquerdas terão condições de ir ao segundo turno. Só não acho que a gente deve trabalhar com a ideia de que a volta das esquerdas ao poder tem que se dar obrigatoriamente em 2022, caso contrário acabou tudo. Há outros países onde a esquerda foi derrotada e demorou um pouco mais pra voltar.
Vamos tentar voltar em 22, inclusive em termos de unidade, mas não podemos dizer à população que, se não voltarmos em 22 não há mais luta, não há mais transformação. De qualquer forma, é bom registrar que Bolsonaro, hoje, iria para o segundo turno, mas as pesquisas já mostram que há setores que votaram nele na eleição passada e não votariam novamente, inclusive entre os evangélicos.

Movimentos comunitários

É possível e necessário retomar os movimentos comunitários. Não sei se a palavra é retomar. Há movimentos que existiam antes do PT e continuam existindo, outros que se alteraram e há novos movimentos. A reorganização do capitalismo mundial modificou muito o mundo do trabalho e o PT é um partido que nasceu a partir do mundo do trabalho, na cidade e também no campo.
Em 1979, havia 120 mil metalúrgicos na categoria, hoje há 40 mil. Houve deslocamento no mundo do trabalho. O capital industrial era hegemônico. Hoje é o capital financeiro fortemente internacionalizado. Há uma crise do movimento sindical, não apenas porque o partido parou de investir. Há uma crise de representação. São novos desafios.

Guinada à direita na igreja católica

Houve também uma política de desconstrução da igreja progressista no Brasil. Não foi por causa do PT que as comunidades de base desapareceram. Durante o pontificado de Wojtyla (Karol W., Papa João Paulo II), a partir de 1978, quando morria um bispo progressista, era substituído por um bispo conservador.

Novos tempos, novos desafio

A esquerda que não é capaz de enfrentar desafios é melhor fechar as portas. Eu não trabalharia só com a retomada do que fizemos no passado. Lula costuma dizer que o metalúrgico de hoje é completamente diferente, seus desejos são diferentes. Naquela época, o metalúrgico queria que o filho estudasse, hoje, metade dos metalúrgicos têm curso superior, fazem mestrado, querem ser microempreendedores. Eles não se sentem classe operária.
A juventude de hoje é diferente. Há muitos jovens, cujos pais são de esquerda, que militam no movimento social, mas não querem militar em partido político. A esquerda precisa entender isso. O trabalho não é só trazer as pessoas, mas apoiar o que elas já fazem. Na periferia de São Paulo, por exemplo, há um trabalho extraordinário.

De volta às bases

Para sairmos vitoriosos contra o bolsonarismo em 2022 tem que haver um esforço vinculado ao trabalho dos movimentos sociais, não só os movimentos sociais clássicos. Estamos discutindo no PT a volta dos núcleos de base, mas, não exatamente como aqueles da década de 1980. Há uma parcela de jovens das classes média e popular que pode ser atraída a militar politicamente por determinadas questões que antes não eram centrais, questões ambientais, de raça, de gênero. Hoje, a esquerda brasileira consegue integrar reivindicações de igualdade econômica e política com essas bandeiras.

Segurança Pública

As esquerdas têm que pensar melhor a questão da segurança pública. Certa vez, uma pesquisadora me disse que, no Rio de Janeiro, dois anos antes da eleição de Bolsonaro, o eleitorado popular estava muito dividido entre o social, representado pelas esquerdas, pelo Lula, e a segurança pública, representada por Bolsonaro.
E Bolsonaro tinha política de segurança pública? Não, mas essas pessoas achavam que sim e que as esquerdas não davam bola para essa questão. Se vamos disputar as eleições em 2022, precisamos de propostas nesse campo. É possível ter uma política democrática de segurança pública? Nós, às vezes, não tratamos algumas questões que são muito importantes para parcelas do povo.

Diálogo com os evangélicos

Nós podemos e devemos dialogar com os evangélicos das classes populares, não devemos aceitar o estigma de que ser evangélico significa ser, a priori, conservador. Nós temos que entender essas pessoas. Quando eles gostam de nós, por que? Quando não gostam, por que? Os evangélicos pentecostais não tinham o peso nas classes populares brasileiras que têm hoje. Temos que encontrar uma maneira de dialogar, expressar as angústias, os desejos, as esperanças também dos evangélicos de classe popular, caso contrário, não voltaremos ao governo nunca.

O jogo está mudando na América Latina

Nós fomos derrotados, não se pode ignorar a derrota, fingir que não foi derrota, mas, é preciso reconhecer que, em vários países da América Latina, a esquerda está voltando democraticamente ao poder. Por que isso não pode acontecer no Brasil? Pode, mas, para isso, precisa motivação, superação dos erros, não basta resgatar o legado. A sociedade precisa sentir que estamos apontando o futuro, dando respostas novas a problemas novos.

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