Por Simão Pessoa, de Manaus (AM)
Depois de uma luta heroica contra um câncer na próstata durante os últimos dois anos, o jornalista, poeta, fotógrafo e agitador cultural Marco Gomes jogou a toalha. Morreu na manhã desta quinta-feira, 28, de infarto agudo do miocárdio, quando se preparava para mais uma consulta diária na Fundação Centro de Controle de Oncologia do Amazonas (Cecon), atividade da qual não se descuidava mesmo nesses tempos bicudos de pandemia. Ele mesmo relatava sua via crucis quimioterápica, com um misto de resignação e bom humor, na página que mantinha no Facebook. A nossa aldeia cultural ficou bem menor com essa sua partida inesperada. Sim, incréus, o poeta Marco Gomes não mora mais aqui!
Amigo de adolescência do compositor e músico Afonso Toscano, que faleceu no início do ano passado, e do poeta, compositor e artista plástico Arnaldo Garcez, atualmente morando no Rio de Janeiro, Marco Gomes era um autêntico globe-trotter. Quando o conheci, em 1982, no Bar do Armando, ele tinha 28 anos e já havia morado em Boa Vista, Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador e Belo Horizonte. Escrevia poemas desde os 17 anos, mas ainda não tinha nenhum livro publicado. Ficou surpreso ao saber que eu trocava figurinhas com a galera linha de frente da poesia marginal daquela época (Glauco Mattoso, Leila Miccolis, Artur Gomes, Euclides Amaral, Paco Cac, Marcelo Dolabela, Hélio Leite, Sebastião Nunes, Ulisses Tavares, Raul Christiano Sanches, Zanoto, Nicolas Behr, Márcio Almeida et caterva). Ficamos amigos de infância. (o poeta mineiro Marcelo Dolabela, autor do clássico ABZ do Rock Brasileiro, faleceu no início do ano, em Belô, por complicações decorrentes de um AVC que havia sofrido no ano passado. 2020 está sendo um ano terrível!)
Juntos, nós três (Marco, eu e Arnaldo) fundamos o Coletivo Gens da Selva (o nome era uma brincadeira com o famoso personagem Jim das Selvas, usando “gens”, “gente” em francês para marcar posição), uma espécie de cooperativa anarco-lítero-musical responsável pelo primeiro disco do cantor e compositor Roberto Dibbo (produzido pelo poeta Anibal Beça). Aliás, o Coletivo Gens da Selva foi a primeira entidade cultural do Amazonas a ser registrada no Ministério da Cultura (MinC) e desfrutar das benesses da Lei Sarney. Éramos anarquistas, não idiotas.
Nós três também publicamos os jornais O Caboco (prosa, editado pelo escritor Rui Sá Chaves), Miratinga (poesia, editado por Marco Gomes e Arnaldo Garcez) e Bodó na Lama (humor, editado por mim), e, mais tarde, ajudamos a fundar o Sindicato dos Escritores do Amazonas, que teve como primeiro presidente o artista plástico, escritor e poeta Anísio Mello, de saudosa memória, e a abusada Banda Independente Confraria do Armando (BICA), um dos orgulhos do carnaval de rua amazonense.
Em parceria com o poeta Carlos Araújo, Marco Gomes editou quatro antologias poéticas intituladas Poetatu, para mostrar os novíssimos poetas da praça e textos inéditos da velha guarda. Entre os poetas publicados estavam Almir Graça, Anísio Mello, Carlos Araújo, Bosco Ladislau, Castro e Costa, Celestino Neto, Davi Ranciaro, Célio Cruz, Eliberto Barroncas, Felipe Wanderley, Henrique Mesquita, José Ribamar Mitoso, Jersey Nazareno, Marcileudo Barros, Marco Gomes, Durango Duarte, Aldisio Filgueiras, Anibal Beça, Luiz Bacellar, Simão Pessoa, Tenório Telles e Zemaria Pinto. Me lembro de ter feito a apresentação da Antologia nº 4, lançada em 1994:
“No futuro do pretérito, essa antologia poética feita nas coxas será o livro narrativo mais instigante de 2014. O New York Times informará. Mistura de Win Wenders com Bouvard et Pécuchet, muitas vezes parece Bukowski. Sim, é um livro preguiçoso. Sim, é um livro engraçado, gostoso de ler. Um livro triste, angustiado. Um livro de crônicas. Um livro de poesia. Um livro de filosofia. Um livro de memórias travestidas em ficção. Escritura sem afeto. Texto raiva-ternura. Chocante. Lindo. Poetatu. Poesia paca, bicho! Sim, há uma gota de sangue em cada poema. Ao alarme, prefiro o ladrão. Biscoitos finos para a massa. Poetatu já nasceu clássico. E não fosse isso seria aquilo. De leve.”
De lá pra cá, Marco Gomes publicou quatro livros de poesia e um livro de crônicas (“Agora eu conto… Retalhos do Rebotalho”), onde ele conta o arranca-rabo que fez no Rio de Janeiro, no final dos anos 80, durante o lançamento de uma antologia poética lançada pela Editora Shogum, da Cristina Oiticica, esposa do “mago” Paulo Coelho.
Quando ele me contou que seu poema “Apocalipse” havia conquistado o primeiro lugar do Concurso Nacional de Poesias promovido pela editora, alertei o maluco sobre a picaretice por trás do concurso:
– Porra, Marco, eles dão o primeiro lugar para 100 poetas diferentes, incluem todos numa antologia e obrigam cada participante a comprar 100 exemplares do livro. Como todo poeta é narcisista e que ver sua obra publicada, todo mundo compra. Aí, a Editora Shogum vende 10 mil exemplares, lucra 50% das vendas e fica todo mundo satisfeito… Já fizeram isso com o poeta Bosco Ladislau. Você vai cair nessa esparrela de novo?…
Cristão novo, ele não quis me ouvir, pagou pra ver e depois foi cutucar a onça com vara curta. Seu relato sobre a presepada é um dos textos mais hilariantes do livro.
Um de seus poemas mais conhecidos, salvo engano, se chama “Autorretrato”: “Dizem por aí / que eu não sou / bom-partido… / Tô com a galera / em gênero, número e grau: / Sou melhor inteiro!”. É desse jeito bem-humorado que vou me lembrar do maluco. Valeu ter sido seu contemporâneo, brodão! E as huris do Paraíso que se cuidem…
Simão Pessoa poeta, cronista, blogueiro, editor, escritor com vários livros publicados: ‘Manual do Canalha’, ‘Rock: a música que toca’, Funk: a música que bate’, ‘Reggae: a música que pulsa’, ‘O Templário de Barcelos’, ‘Sanatório geral, entre outros. Mora e trabalha em Manaus. A partir de agora temos a honra de contar com o seu talento como colaborador nas fileiras do Jornal Flitoral (Costa Verde).