Apagão no Amapá, um buraco negro de má gestão e falta de fiscalização

Édi Prado

Chovia muito na noite de 3 de novembro de 2020. Os trovões estrondosos pareciam terremotos seguidos de intensas e luminosas rasgas mortalhas de assustadores raios. Os animais buscavam abrigos, desesperados. Crianças se entrincheiravam no colo de quem estivesse mais perto. Ventos fortes e muita água. Em apenas 24 horas, Macapá, capital do Estado do Amapá, recebeu o dobro da chuva prevista para todo o mês de novembro.
Por volta de 20 horas a luz apagou. Para nós seria apenas uma rotina com retorno dentro de, no máximo, duas horas. Ninguém tinha a dimensão do problema. Blecaute em 13 dos 16 municípios do Amapá.
Quando os técnicos da Companhia de Eletricidade do Amapá (CEA) viram os dois transformadores incendiados trataram logo de culpar os raios que teriam atingido a subestação. Mentiram. Ficou comprovado que uma sobrecarga provocou o incêndio.
O Ministério de Minas e Energia afirma que a subestação deveria funcionar com dois transformadores e ter um terceiro de reserva. Com o incêndio, um equipamento foi destruído, outro ficou sobrecarregado e foi danificado e o terceiro estava em manutenção desde dezembro de 2019.
Assim, a principal subestação de transmissão de energia do estado, que faz o Amapá ter acesso ao Sistema Interligado Nacional (SIN), pegou fogo, causando o corte no fornecimento para 90% da população amapaense, cerca de 765 mil pessoas.

A irresponsabilidade gera o caos

Com a falta de eletricidade, surgem problemas no fornecimento de água potável e nas telecomunicações, além de filas nos postos de combustíveis e prejuízo generalizado no comércio. A previsão mais otimista era de que o sistema voltaria a funcionar plenamente em 15 dias. Foram necessários 22 dias. Desde 6 de novembro, houve mais de 120 protestos contra o apagão.
Um transformador levado de Laranjal do Jari, sul do Estado, para atender emergencialmente a situação, levou 15 dias para chegar a Macapá. O segundo, vindo de Boa Vista (RR), levaria 30 dias para entrar em operação. Surgiu a sugestão para montagem de usinas termoelétricas para atender a capital e o município de Santana, o segundo maior do Estado. Uma ironia. Um Estado com quatro hidrelétricas conectadas ao SIN ter que usar usina termoelétrica e de favor.
Começava o mais longo período de trevas no Amapá. Mas havia a crença de que logo tudo voltaria à normalidade. Ledo e terrível engano. Foram quatro dias na escuridão total. A cidade de Macapá é plana e há poucos prédios. Subindo na caixa d’água, já tínhamos a dimensão de um buraco negro. Nem uma luzinha acesa. Nem túnel existe.
Mesmo com tanta chuva, tínhamos a sensação de 30 graus. Um vapor quente se concentrava abaixo das nuvens. As muriçocas, carapanãs e outros insetos montaram o arraial para um halloween fora de hora. Velas, onde estão as velas? Lamparinas, cadê as lanternas, isqueiro, fósforo? Como dormir num clima desse? Começava o martírio.
Abanar as crianças gera mais calor para quem abana. Quem tem caixa d’água e abasteceu antes do apagão ainda poderia tomar banho. Sem precisar aquecer. O calor era tanto que a água já vinha morna. E quem não tem como reservar água? À noite é mais difícil encontrar comércio para comprar garrafões de água mineral. Sem energia, quem se arriscaria a permanecer com as portas abertas com toco de vela?

Um impensável apagão de comunicação

Não adianta ligar a TV nem o rádio. Em Macapá, apenas uma emissora de rádio, que tinha gerador próprio, permaneceu ligada durante todo esse martírio. Quem tinha um rádio a pilha pôde se dar ao luxo de saber que 13 municípios estavam no breu. Celular sem carga na bateria não funciona. Já se imaginou sem celular durante meia hora? Que agonia, quatro dias. Que sensação esquisita ficar sem comunicação.
Noutro dia, a busca por um estoque de velas, lanternas de emergência, querosene para as lamparinas e lampiões, lanternas a pilha, água para beber, cozinhar e tomar banho. Os estoques foram se esgotando em toda a cidade.
Após quatro dias de breu, a primeira semana de racionamento tinha seis horas com e seis sem energia elétrica. Uma correria para abastecer o celular. O aeroporto Internacional de Macapá nunca tinha recebido tanta gente. Não só para viajar em busca de luz em outros estados, mas para abastecer o celular e enfrentar longas filas nos caixas eletrônicos.
No 12º dia, o racionamento passou a funcionar de três em três horas. Que situação! Sem energia, sem água, sem celular, sem bancos para sacar ou pagar contas, não poder comprar nada com o cartão, sem TV e com alimentos estragando nas geladeiras e freezers. Remédios perdidos sem conservação. Nas feiras populares, toneladas de pescados e outros produtos sendo jogados fora por falta de gelo.
O boato de que faltaria combustível gerou quilométricas filas nos postos que tinham geradores.
E tudo isso em meio à crise da pandemia do Covid-19 e chuvas torrenciais provocando alagamentos devido as obras do período de campanha política que obstruem os caminhos das águas da chuva.

Sem luz, sim, sem humor, jamais

Não bastasse tudo isso, quatro trombas d’água vieram se exibir dentro do Rio Amazonas, na altura de Macapá. Não faltaram memes para rir dessa desgraceira toda. Uma aeromoça anuncia aos passageiros de um voo lotado que, devido a problemas técnicos, teriam que fazer um pouso em Macapá. Passageiros em pânico.

E a coisa parece não ter fim

No dia 17 de novembro, novo apagão abala Macapá. Calamidade em série. Problemas na linha de transmissão da hidrelétrica preocupam ainda mais a população que já sofria um racionamento. Para completar a amarga dosagem de cicuta elétrica, o presidente Jair Bolsonaro vem a Macapá no dia 21, posa para as fotos, aperta o botão de uma usina termoelétrica e viaja antes que ocorra outro apagão.
Um cenário de terror e incertezas. Se, de fato, a orelha de alguém fica quente quando falam mal de uma pessoa, a orelha de Bolsonaro precisaria de muito gelo para suportar as maldições endereçadas a ele.
Em meio a tantas provações e testes de sobrevivência, dia 25 de novembro, outro forte toró seguido de relâmpagos e trovões, provoca pânico entre os moradores da Rua Laranjeiras, zona norte da cidade. Redes de alta-tensão encostam uma na outra devido a ventania e ocorre um estrondoso e faiscante show pirotécnico. “Parecia o juízo final. Era noite, mas parecia dia, com fogo por todo lado”, avalia, trêmula, uma moradora.

Uma luz no fim do túnel

A Companhia de Eletricidade do Amapá (CEA) informa que, na terça-feira, 24, o rodízio no fornecimento de energia será oficialmente encerrado e a prestação do serviço normalizada com a entrada do segundo transformador, vindo de Laranjal do Jari. Na tentativa de minimizar o descaso para com a população do Amapá, o Governo Federal edita a Medida Provisória nº 1010 de 25.11.20, isentando os consumidores amapaenses do pagamento da fatura de energia elétrica referente aos últimos 30 dias.

Perdas e danos para quem

A isenção do pagamento não causará prejuízo à Companhia de Eletricidade do Amapá (CEA) que receberá os valores por meio da Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), que terá aporte de R$ 80 milhões feito pelo Tesouro Nacional. Em síntese, eles não perdem nunca.
Resta saber quem vai pagar por mais de cinco incêndios em casas com perda total para os moradores? E os feirantes, mini box, pequenas mercearias e o comércio em geral, quem paga os prejuízos? Desligou a energia, tira-se todos os eletrodomésticos da tomada. Chegou, liga tudo. Desligou, tira tudo. E nesse vai e vem, superaquecimento e queima dos aparelhos, provocando incêndios onde quem saiu esqueceu de desligar.
Só quem viveu ou vive essa realidade entende a angústia. O apagão alterou tanto a vida da população que as eleições foram adiadas, em Macapá, para o mês de dezembro. Que essa tormenta sirva para que os eleitores tenham repensado o voto. O mais intrigante disso tudo é que o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, é amapaense e o irmão dele, Josiel Alcolumbre, é candidato a prefeito de Macapá.

  • Nas regiões Norte e Nordeste, Rasga Mortalha é o nome popular de uma pequena coruja de cor branca e voo baixo. O atrito de suas asas produz o som de um pano sendo rasgado. Diz a lenda que, quando ela passa sobre uma casa, alguém, ali, morrerá. A rasga mortalha só sai na boca da noite.

Édi Prado é jornalista, amapaense, morador de Macapá.



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