A vida é tão rara

Evandro Luiz Souza

Antônio Laranjeira sente pingos de chuvas nas costas. É como se fosse um aviso, o que faz aumentar o ritmo de trabalho. Sabe que tem pouco tempo para retirar a última safra de mandioca. Olha para cima e o que vê? Sinais que ele bem sabe interpretar. Nuvens escuras carregadas que expelem relâmpagos sempre acompanhados de trovões. São tão fortes que nem um pássaro se atreve a bailar no meio da floresta. No rosto de Antônio, suor e água se misturam e percorrem o mesmo caminho feito pela dureza do trabalho do campo.
Início do mês de março, das cabeceiras dos rios Jari, Amaparí e Araguari é despejado um volume de água imensurável no Amapá. As chuvas esmagam as plantações agrícolas. Nos lagos, igarapés e rios, o nível da água subiu tanto que os peixes desapareceram.
É nesse cenário de alternância climática que Laranjeira vive há 20 anos com a mulher Izabel. Há sete anos chegou o único filho, Lucas. Agora, ele decidiu ir para a cidade grande. Por enquanto, partiria só. A mulher e o filho ficariam em casa de amigos. Viria buscá-los com o salário que deveria ganhar trabalhando. Na despedida nenhum choro, nem um abraço, apenas olhos marejados de quem deixa pra trás somente o dote da incerteza.
No meio do caminho, Laranjeira ouviu o grito dos vaqueiros tocando a boiada rumo as marombas. Curral de madeira construído acima do nível do rio. Será assim nos próximos cinco meses. O caminhão, um ‘pau de arara velho’ já carregado com frutas e legumes, é o único meio de transporte para chegar na cidade grande.
Depois de uma viagem longa e cansativa, Antônio Larajeira desembarca em uma estação rodoviária barulhenta, suja, com muita gente correndo de um lado para outro. O mototáxi foi a primeira novidade. Mostrou o endereço no bairro Zerão e lá se foi Antônio Laranjeira com sua pequena bagagem na garupa de uma moto cortando as ruas e avenidas da cidade de Macapá.
Laranjeira foi levado até uma área de ponte. Na frente da casa onde ia ficar, quatro crianças brincavam sem perceber o perigo que corriam caso caíssem no lago. Ele foi recebido por Dayse, de 15 anos de idade, sobrinha da esposa de Laranjeira, que vivia com José Gregório, conhecido na baixada como Faísca. Corria à boca pequena na comunidade que Faísca era foragido da polícia. Acusação: ele tinha ‘deletado o CPF (assassinado) de três homens em Bacabau, município do Maranhão.
O barraco tinha apenas uma sala e dois quartos. Tudo dividido por cortinas de pano. Nem bem chegou, Laranjeira já queria sair atrás de emprego. Foi aconselhado a descansar. No outro dia sairia com ‘Faísca’ em busca do emprego. Laranjeira concordou, mas, de madrugada, foi acordado. Faísca disse que tinha um trabalho a fazer e que renderia um bom dinheiro.
O hóspede deixou a pequena mochila que fazia de travesseiro em um canto. De bicicleta, os dois saíram. Ninguém na rua, silêncio total. De longe avistou um estádio, sentiu no rosto o ar fresco da madrugada vindo do grande rio. Olhou para outro lado e ouviu o som de tambores gemendo as dores dos antepassados.
Faísca disse que ia dar um rolé pra ver a situação. Pediu para Laranjeira esperar. No meio da escuridão, Laranjeira pensou na família, nos tempos em que a pororoca atraía gente de vários lugares do mundo e era sempre requisitado por conhecer bem a região. O amanhecer chegava e as estrelas sumiam. O céu tomava cores avermelhadas e o azul do infinito se espalhava anunciando um novo dia. Antônio Laranjeira, como que embriagado pela atmosfera, flutuava em sonhos platônicos.
A volta a realidade foi tão dura quanto a vida que levou. O impacto por trás o fez lembrar o ronco da pororoca chegando, anunciando a destruição que o fenômeno fazia ao encontrar o que tinha pela frente. Laranjeira foi arrastado por mais de 100 metros, deixando, no asfalto, além do seu sangue, a esperança que o trouxera até ali.
O carro sumiu deixando Laranjeira agonizante. Ele viu a vida passar como se fosse no vídeo-taipe, sentiu um calor suave no rosto. Era o exato momento do alinhamento do sol com a linha imaginária do Equador. O som dos tambores diminuía em sintonia com as batidas do coração do agricultor. Antônio Laranjeira deu o último suspiro. Morreu no meio do mundo em pleno Equinócio das Águas sem realizar o sonho de ter a família ao seu lado num futuro promissor.

Evandro Luiz Sousa é graduado em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, pela Faculdade Hélio Alonso (Rio de Janeiro) (1980/1985) No final  de 1986 retornou a Macapá sua terra de origem. Lá trabalhoui no Jornal Fronteira, e em seguida foi convidado para trabalhar na Rede Amazônica (TV Amapá) como repórter de rua.

Paralelamente ao trabalho da TV exerceu o cargo de Assessor de Comunicação Social na Legião Brasileira de Assistência – LBA. Também foi Assessor do Ministério Público do Amapá, Assessor de Comunicação da Assembleia Legislativa do Estado e presidente do Sindicato dos Jornalistas do Amapá. É portador da doença de Parkinson e está aposentado há seis anos.

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